domingo, 4 de setembro de 2011

Roda de leitura 1 - "A dança dos Ossos" de Bernardo Guimarães (Ensino médio)

Muito se fala do desinteresse total e absoluto dos alunos pela leitura, e isso não é um exagero. Pode ser uma generalização, mas não um exagero. E afinal como é que um professor de português vai "trabalhar leitura em sala de aula" (que expressão estranha... mas é a utilizada O.o) nessas condições? Bom, não tenho a MENOOOOR intenção de me posicionar como "aquela que encontrou a solução!", tampouco a "novata que mal chegou e resolveu o problema há muito presente" (afinal, mal tenho dois anos de magistério...). Também não se trata de pesquisa alguma, nem nada científico. Ainda não fiz mestrado nem me candidatei a tal - estou fazendo um curso à distância pelo CECIERJ em redação acadêmica, a fim de entender melhor de como escrever de maneira objetiva, para aí sim, tentar uma pós. Vou apenas relatar alguns procedimentos realizados em sala de aula, na rede estadual de ensino, que PARA MIM, deram certo. Não tenho a intenção de sugerir nada disso a alguém, e por certo, muito do que fiz/faço nem mesmo é novidade para alguns  colegas já calejados. Bem, chega de enrolar e vamos aos fatos.

Quando falo sobre "leitura", eu percebo que o aluno a associa a algo longe de sua realidade; ele pensa LEITURA=LIVROS GRANDES, CAROS, DIFÍCEIS. Clássicos, coisa de "intelectual". Certo dia, ouvi de uma aluna, que viu uma revista Época na minha mesa (ÉPOCA!!! obs.: era da escola ^^) "ai, professora, acho tão bonito gente que lê essas revistas, época, Veja... coisa de intelectual, inteligente" (!!!) E ele também não pensa no português como algo SEU, ferramenta de que se serve TODOS os dias. É troço difícil, distante, fora de seu mundo. Nunca vai dominá-lo, então melhor não mexer com ele. E, claro, além de tudo, chato.

Numa era tão imediatista como a em que vivemos, é complicado oferecer algo que não proporciona prazer imediato. Sim, pois que a leitura só causa prazer no final de toda uma etapa que deve ser vencida, etapa esta que vem por eles sendo evitada/negada por toda uma vida.

Bem, costumo ver o termo "rodas de leitura" mais associado ao ensino fundamental. Mas resolvi tentar numa série de segundo ano do ensino médio na escola estadual onde leciono. Estávamos vendo "prosa romântica", e esbarramos em Bernardo Guimarães, cujo trabalho mais famoso é "A escrava Isaura". Não tendo tempo para lermos um romance inteiro dele, resolvi mostrar um de seus contos. Claro que nessa hora, não sei quanto aos outros professores, mas não consigo ser muito imparcial... acabo escolhendo algo de que gosto. Isso não é tão difícil, visto que gosto de quase tudo, eu, que sou aquela pessoa que gosta de ler até bula de remédio. Mas poxa, é preciso passar ENTUSIASMO na leitura para o aluno ver que aquilo pode ser legal... é mais fácil fazer isso quando se gosta, né? E sai bem mais naturalmente... não se enganem, os alunos PERCEBEM quando a gente não curte aquilo, rs. E vai a gente dizer que ele tem que gostar ou fazer, hehe... enfim, escolhi o conto "A dança dos ossos". Texto gostoso e fluido, liguagem acessível, mesmo com mais de um século, fala sobe uma tumba de onde os ossos saem para dançar, enquanto a alma do defunto fica na sepultura. É a "maldição de Joaquim Paulista"...

Pedi que me ajudassem a arrumar cadeiras em círculo, nos fundos da sala. Até então, claro que foi um "fuzuê". Tinha até uma menina sambando, sabe lá Deus por quê. Doidinhos.

Com certo custo, não nego, fiz meus queridos sentarem nas cadeiras e fui entregando a cada um deles o conto xerocado. Alguns já faziam caretas, outros "ah, eu não vou ler não, professora!", "ah, não quero não, professora!" (!) e eu neeeem aí. Quando terminei de entregar, uma menina quase gritou:
- Professora, cê não vai mandar a gente ler não, né, pelo amor de Deus! Odeio ler em voz alta, aliás, ODEIO LER!"
- Olha só, eu não vou obrigar ninguém a ler em voz alta, não. - disse, muito calma.
- NÃÃÃÃÃOO?
- Não, não. Vamos fazer o seguinte. EU vou começar. Depois, eu deixo QUEM QUISER continuar. Certo?
- Ah, que bom - uma menina riu, e chegou a colocar o texto de lado e cruzar as pernas, como se dissesse "então nem vou olhar essa merda.".
- Beleza, então vamos lá.
Comecei a ler, com voz afetada de locutora de programa de terror, fazendo caras e bocas, como (dizem) costumo fazer:

"A noite, límpida e calma, tinha sucedido a uma tarde de pavorosa tormenta,
nas profundas e vastas florestas que bordam as margens do Parnaíba, nos limites
entre as províncias de Minas e de Goiás.
Eu viajava por esses lugares..."

(A quem interessar: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua000038.pdf  é delicioso!)

Após a decrição, quando enfim os personagens iam falar, perguntei quem queria continuar. A princípio, ninguém, como era de se esperar. Um pouco de insistência e uma voluntária se pronunciou. Depois outra, depois outro...virei-me para uma que não havia lido:

- Quer continuar, A.?

- Não, professora, eu leio muito mal.

- Bah, que nada. Se não treinar um pouquinho, vai continuar lendo mal. Quem vai emagrecer sem fazer exercício? Você emagreceu bastante, não foi?


- Ai, professora, brigada... fico tão feliz quado me dizem isso!

- Então retribui lendo aí - o pessoal riu e ela pareceu ficar mais descontraída. E leu. Não a corrigi salvo nas palavras que poderiam comprometer o entendimento do texto. Eu havia alertado sobre a presença de algumas palavras desconhecidas, mas que seriam entendidas pelo contexto (depois, confirmei isso verificando as palavras por eles marcadas. A grande maioria havia SIM, sido entendida).

Notei com alegria que P., a menina que havia largado o texto numa cadeira ao seu lado, agora o tinha nas mãos, e acompanhava com interesse, chegando a ficar curvada. O "causo" misterioso relatado pelo barqueiro foi acompanhado por risadinhas, "credo" e "cruzes" baixinhos, "que horror", "eu sairia correndo, tá doido!" "eu já estaria morto só de ver isso!", ou seja, estava causando REAÇÃO.

Os leitores foram se revezando, não com muita frequência, "quebrando a narrativa nos momentos certos", como num pequeno comercial. Uma coisa que me marcou muito foi que qundo eu disse "Muito obrigada, fulano", ANTES DE PERGUNTAR QUEM QUERIA CONTINUAR, a aluna A., que se recusou veementemente a ler de início, continuou, resoluta. Houve mesmo uma pessoa que disse "eu quero continuar, mas acho que ninguém quer que eu leia, por eu ler mal demais". Falei " 'bora' com isso, deixa de estrelismo" eles riram e ela também, e foi em frente. Talvez alguém dissesse que eu agia levianamente, com essas piadinhas infames e não com palavras de real motivação... comigo o bom humor costuma funcionar melhor nessas horas tensas - eu tenho sim, meus momentos de "passar mensagens motivacionais", contudo naquela hora "não podia deixar a peteca cair", não podia deixar o entusiasmo esfriar... tinha que ser rápido e rasteiro. Aqueles jovens, que adooooram apregoar que não gostam de ler, estavam vibrando, tensos, querendo saber o que iria acontecer. E ESTAVAM LENDO. Mesmo os que disseram que não o faria. Houve mesmo um que disse que era a PRIMEIRA VEZ que fazia leitura em voz alta (!)

                                                   Este foi o trecho ao qual eles mais reagiram


Assim prosseguiu (teve uma hora que a luz piscou, foi aquele alvoroço!) até que...
- Ué... - disse um.
- Professora, cadê o final????
- É, cadêee??? Não terminou! Ele disse que ia contar a história do Joaquim Paulista, explicar a maldição, mas acabaram as "folhas"!
- É - disse eu.
-????....
- Eu só trouxe a metade o conto. Terminaremos de ler na próxima aula.
- PROFESSORA, NÃO FAZ ISSO COM A GENTE!
Houve gritinhos de "sacanagem, quero saber o resto!", "isso é maldade", dentre outros.
- Lembram quando no início dessa matéria, romantismo em prosa, a gente viu sobre os "folhetins"? Que eram mesmo? - Perguntei, já me levantando e fingindo que não ligava pro chororô deles.
- Eram aquelas histórias que saíam nos jornais antigamente, que continuavam só no outro dia, deixando todo mundo querendo saber o que iria acontecer - respondeu um.
- Tipo as "novelas de hoje", os "coitados" não tinham televisão, então... - disse outra.
- Pois então - disse eu - vocês vão saber agora como aquelas pessoas se sentiam, né?
"Ai, professora, maldade", cheguei a ouvir. Alguém foi além e disse, quase em provocação
- É ruim de esperar, EU VOU PROCURAR NA INTERNET!

Hum. Um gostinho de "missão cumprida" me invadiu naquele momento.


                                                                  Valeu, carinha.

7 comentários:

  1. Amando seu blog, em especial esse post. Um dia estarei dando aula tb, rsrs.
    Fique a vontade pra vistar meu blog,
    http://www.ironieundverachtung.blogspot.com/

    Ah, é o blog da Tatiana. bjss

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  2. Caraca, menina.
    Adorei essa maneira de dar aula de literatura!!! Quero fazer igual. Contos são a melhor coisa para introduzir essas crianças e jovens a literatura e prática da leitura.

    Bjos

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  3. Tati, teu blog tá um luxo, o meu nem chega perto, hehehehehe. Obrigada mesmo! Vamos nos visitando então! Bjss

    Betina, que bom que gostou...eu tb prefiro começar com contos, crônicas, os meninos se assustam com livros, hehehe. De grão em grão... tem que provocar MESMO...teve uma menina que foi procurar na biblioteca "Werther", de Goethe, que nem é pedido, porque falei da epidemia de suicídios que ele teria "provocado" na época. Ela ficou impressionada e quis saber que tipo de livro era esse. NÃO ADIANTA mais falar "leia porque cai no vestibular!", pois grande parte ou não quer nem fazer vestibular, ou vai procurar é resuminho na net, caso vá fazer a prova.

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  4. kkkk. Vc foi muito sagaz, Flavi! É por aí mesmo sempre inventando e reinventando maneiras criativas de colocar "leitura" nestas cabecinhas imediatistas sem contato mesmo com a leitura/literatura...rs
    Vc está certíssima em tudo, em escolher algo que a entusiasme, em não se ofender com os comentários deles (não se importar mesmo, pois vc demostra firmeza, maturidade e autoridade sem ser autoritária), vc também está certa em motivá-los das mais variadas formas possíveis até mesmo "na brincadeira", e está mesmo correta em "levar na brincadeira", pois é um jeito leve de passar conhecimento, uma brincadeira séria e comprometida que só tem um objetivo e consequência: formar não apenas leitores, mas também seres humanos melhores...
    Parabéns e um super abraço!

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  5. Muito obrigada, Anne ^^ super abraço pra você também (agora fiquei super boba com suas palavras, hahahaha ^^')

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  6. Acho que vc ta começando certo com o processo de leitura com os alunos, com textos provocativos, literatura é um jogo de sedução refinadíssimo!
    Muito interessante a menina se interessar por Werther, comigo aconteceu o mesmo e hoje to fazendo Letras-Alemão por causa dele, hahah. Pode ser que algum aluno se decida pelo que quer na vida (fazer um vestibular) por causa de um livro.
    Não perca o encanto pela Poesia menina.rs

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  7. Também fiquei encantada quando a vi com aquele livro... que por acaso também me marcou muito na adolescência. Tenho muita vontade de aprender alemão desde então, cheguei a fazer umas aulas num curso extracurricular no Colégio Pedro II, mas não passou disso. Tenciono estudar ainda, nem que seja no asilo :P
    A poesia, bem, não sei se foi o encanto que se perdeu, apenas surgiram muitas prioridades e literaturas mais específicas para ler e ela foi sendo deixada de lado de tal forma que me desacostumei... é meio como filme, saca, eu gosto de filme, como todo mundo, mas prefiro de terror, suspense, drama, histórico, e na sequencia das preferências, outros gêneros vão sendo deixados de lado. É o que acontece com a literatura: prefiro romances, novelas, contos, e os demais (crônicas, poesia) vão sendo meio abandonadinhos. De teatro não gosto mesmo, não adianta. Com o perdão do cacófato, nunca gostei ^^
    Bjs!

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